sábado, 19 de janeiro de 2013

O último dia.

Acordou com um formigueiro no braço direito, era costume. Pegou nele com a mão esquerda e abanou-o até voltar a sentir. Tenteou no escuro até aos óculos, encontrou o candeeiro, viu as paredes brancas, o espelho, os livros, o cabide. Devia ter arrumado a roupa no armário, era uma vergonha que lhe vissem o quarto assim.

Era difícil escolher. Gostava de ir tomar o pequeno-almoço à praia, as torradas eram de pão saloio tão bom e sempre daria uso decente a um dos sete novos pares de óculos de sol. Mas há aquela questão de sair de casa sem café, nunca funciona, fica-se com aquela sensação de falta de banho o resto do dia. Ligou a máquina de expresso, fez torradas, comeu-as com atenção em frente à TV. How I Met Your Mother. Ok, até podia ser pior.

Fechou a porta com duas voltas de chave. Contou cinco andares de elevador.

O carro fazia-a espirrar, tinha o tablier coberto por uma espessa película de pó. Conduzir e espirrar era um perigo, pensava nisso amiúde. Se fores, digamos, a 100 quilómetros por hora e espirrares e fechares os olhos por, vá, um segundo e meio, percorreste entretanto 42 metros, mais coisa menos coisa. Quantos gatos podes atropelar em 42 metros? Vários gatos. Há gatos por todo o lado.

Estacionar naquela rua era praticamente impossível. Decidiu entrar por baixo, pelo portão do museu. Subiu até ao jardim e seguiu por palpite pela direita. Nunca sabia exactamente como ir dar aos sítios que queria ali, mas acabava por reconhecer um ou outro canto e encontrar os bancos de madeira, quiçá percorrendo sempre caminhos diferentes. O banco estava ligeiramente húmido. O Verão demorava mais a chegar, cada ano que passava. Deviam inventar um nome novo para o aquecimento global, era simplesmente enganador.

Estar ali era bom, tinha sido uma boa escolha. Gostava do rio, da curva que fazia ali, da azáfama lá em baixo e do sossego ali em cima. Raramente se cruzara com alguém naquele lugar. As pessoas passavam mas não se sentavam. Tinha fotografias ali, lembrava-se com nitidez. Era anos mais nova, as árvores estavam mais verdes e levava roupa preta, apesar de o sol parecer quente. Pegou no livro, leu-o até ao fim.

Quando voltou a casa, viu o lusco-fusco pela janela. Lusco. Fusco. Mas que raio, que nome tão estranho. Tinha formigas na calha da janela. Não sabia de onde vinham, mas mesmo que soubesse o que ia fazer? Não ia matá-las agora. Quando sentisse comichão de patas fininhas na pele ficaria até mais descansada, pela probabilidade de serem formigas em vez de aranhas.

Foi ver as fotografias. Eram exactamente como se lembrava. Se calhar lembrava-se até de mais contornos do que aqueles que realmente via.

Era natural que estivesse a começar. Não sabia precisamente qual era o processo, não quis sequer perguntar, mas explicaram-lhe que, de tão avançada que ia, a degeneração das retinas ocorreria ao longo dessa noite e que, quando acordasse, pela manhã, já não seria capaz de ver.