domingo, 13 de junho de 2010

A demanda


A mãe tinha fugido do Brasil por amor. Ou melhor, por falta dele para com o sujeito de 60 anos com quem a queriam casar. Eram dez lá em casa, mais meninas que meninos, e todos dispensaram o exame da 4ª classe porque cantavam na ponta da língua as províncias, suas capitais e rios de Portugal.

No tempo em que a tragédia era igualmente dolorosa e contrariamente natural, o pai e os filhos enterraram a mãe sem cabelos brancos. Três anos mais tarde, os filhos sozinhos enterraram o pai. Não há memórias que atestem a causa da morte: amor, cirrose, ambos, dá no mesmo. Os pequenos seguiram os seus caminhos, cada um num mester. Era o que havia a fazer. Era o que se sabia fazer.

Ela tinha andado a aprendiz de chapeleira na cidade. Tinha jeito com as mãos e genica para o que viesse, faltava-lhe era a paciência para acatar ordens de velhas mestras rezingonas, de tal modo que um dia atirou com o avental, disse "Você não manda em mim, que não é minha mãe" e do alto dos seus treze anos pôs-se a caminho de casa de uma tia.

Como nessa época ainda não se sabia do desemprego, que remédio teve senão arranjar trabalho logo a seguir. "Precisa-se ajudante para distribuição de carnes verdes", dizia no jornal. Eram quatro da manhã quando acordou para se apresentar no emprego, não porque tivesse insónias ou nervoso miudinho, antes porque de São Gemil a Fernandes Tomás são 12 quilómetros, isto é, 3 horas a andar ligeirinho com pernas de quase 14. Já lá estava quando a Senhora chegou para abrir a porta do estabelecimento.

"- Bom dia, vim por causa do anúncio."
"- Bom dia, filha, podes voltar pelo mesmo caminho que isto não é trabalho para ti."
"- E porquê?"
"- Homessa, porque a carne pesa mais que a tua."
"- E eu não sei disso?"

A Senhora apartou o sobrolho franzido da fechadura que chocalhava todos os dias antes de se permitir abrir e deteve-se uns segundos naquela figura tísica de narizito empinado e cabelos como um tição.

"- Como te chamas?"
"- Emília."